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‘O mundo acadêmico e o mundo advocatício são cruéis’, diz advogado sobre morte de Daniel Keller

‘O mundo acadêmico e o mundo advocatício são cruéis’, diz advogado sobre morte de Daniel Keller


Vinicius Santana Melo falou sobre a solidão da profissão ao abordar a perda do colega criminalista

Publicado em 15 de junho de 2025 às 14:13

Daniel Keller ficou conhecido por trabalho como advogado criminalista
Daniel Keller ficou conhecido por trabalho como advogado criminalista Crédito: Reprodução

A morte do advogado criminalista Daniel Keller , na última sexta-feira (13), impactou inúmeros colegas de profissão, que prestaram homenagens nas redes sociais. Entre eles, o advogado Vinicius Santana Melo, que é mestre em Direito e atua com pessoas hipervulneráveis. >

Em uma publicação feita neste sábado (14), Vinicius escreveu uma carta aberta para o colega falando sobre solidão que é comum na profissão e no mundo acadêmico. “A sua partida me atravessa como denúncia. Não apenas como lamento. Porque o que mais me dói, Daniel, é perceber que a gente só consegue sentir a gravidade da ausência quando se depara com o próprio abandono. E você, antes de ser professor, advogado, tribuno de excelência, era um ser humano”, disse.>

“E ainda assim – talvez justamente por isso você merecia mais. Mais cuidado. Mais presença. Mais escuta sem pressa. Mais mãos que segurassem as suas quando elas tremessem. Mas o que oferecemos, quase sempre, é o contrário disso. A ausência confortável, o silêncio protocolar, a indiferença que se esconde sob a desculpa da ‘correria'”, acrescentou. >

Ele também destacou o distanciamento nas relações de trabalho, especialmente na área do Direito. “O mundo acadêmico e o mundo advocatício, especialmente, são cruéis. Sofisticados, polidos, cheios de ritos e reverências, mas cruéis. Os títulos se sobrepõem aos afetos. A produção vale mais que o estado emocional. O corpo só importa quando rende. E quando não rende mais, vira ruído, desconforto, ausência conveniente”.>

Por fim, em um pedido de perdão por também ter reproduzido esse comportamento, deixou um alerta: “E se há algo a se aprender com a sua partida, é que a presença necessita ser mais do que uma assinatura em lista. Precisa ser escolha. Um gesto deliberado de afeto”.>

O advogado Daniel Keller foi encontrado morto em um hotel no Caminho das Árvores, na manhã desta sexta, em Salvador. Especialista na área criminal do Direito, Keller foi professor e advogou em casos relevantes, como quando foi assistente de acusação no julgamento de Kátia Vargas, no ano de 2017. Ela acabou absolvida. >

Ele era graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal) e tinha especialização em Ciências Criminais pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Depois de se especializar, foi professor da Ucsal, da Faculdade Ruy Barbosa e FTC, além de sócio da Daniel Keller Advocacia Criminal.>

Confira a carta aberta na íntegra:>


Escrevo agora, quando já não adianta mais.>

Escrevo para o depois, para o nunca, para o silêncio.>

Escrevo quando não há mais destinatário, não há mais olhos que leem, nem mãos que possam tocar.>

Escrevo, talvez, para mim mesmo – ou para o mundo que insiste em chegar tarde.>

A sua morte não me toca como a de alguém íntimo.>

Não nos falávamos com frequência. Não partilhamos grandes conversas. Não fui seu aluno, nem seu colega próximo.>

Mas há perdas que nos ferem mesmo assim – talvez porque, no fundo, sabemos que não deveriam ter acontecido assim, do jeito que aconteceram.>

A sua partida me atravessa como denúncia. Não apenas como lamento.>

Porque o que mais me dói, Daniel, é perceber que a gente só consegue sentir a gravidade da ausência quando se depara com o próprio abandono.>

E você, antes de ser professor, advogado, tribuno de excelência, era um ser humano.>

Um homem real. E como qualquer um de nós: falível, complexo, exausto em certos dias.>

E ainda assim – talvez justamente por isso você merecia mais.>

Mais cuidado. Mais presença. Mais escuta sem pressa. Mais mãos que segurassem as suas quando elas tremessem.>

Mas o que oferecemos, quase sempre, é o contrário disso. A ausência confortável, o silêncio protocolar, a indiferença que se esconde sob a desculpa da ‘correria’.>

E é só quando a morte escancara o que a vida tentou mostrar de forma sutil, que percebemos o quão tarde já é.>

Vivemos tempos em que todo mundo quer parecer solidário, mas poucos se importam de fato.>

É fácil escrever homenagens depois. É fácil usar palavras bonitas quando o outro já não está aqui para exigir humanidade.>

Mas em vida, onde estavam essas palavras? Onde estavam os gestos? Onde estávamos todos nós?>

O mundo acadêmico e o mundo advocatício, especialmente, são cruéis.>

Sofisticados, polidos, cheios de ritos e reverências, mas cruéis.>

Os títulos se sobrepõem aos afetos. A produção vale mais que o estado emocional. O corpo só importa quando rende.>

E quando não rende mais, vira ruído, desconforto, ausência conveniente.>

Quantas vezes alguém perguntou, de verdade, se você estava bem?>

Quantas pessoas olharam nos seus olhos e viram para além da função, da tese, da assinatura institucional?>

Quantas estavam dispostas a ser abrigo, e não apenas plateia?>

É duro dizer isso, mas a sua morte carrega em si a sombra de um erro coletivo.>

Erramos com você, Daniel.>

Erramos porque deixamos você partir em silêncio. Erramos porque só agora nos mobilizamos para sentir. Erramos porque amamos tarde demais – e esse é o amor que já não serve.>

Peço perdão por não ter sido presença quando poderia.>

Por não ter me permitido te conhecer melhor.>

Por não ter feito do pouco tempo – os 5 minutos que conversamos na cantina da antiga sede da Baiana – algo significativo.>

Por ter deixado que você se tornasse apenas mais uma referência de nome, de currículo, de evento, e não alguém a quem eu tivesse dedicado atenção real.>


E não me refiro a um perdão superficial, protocolar, quase decorativo.>

Falo de um perdão que nasce da dor e da vergonha. Da consciência de que falhamos com um de nós – e falhamos de forma irreversível.>

É difícil continuar acreditando na beleza das relações quando elas só se intensificam diante do túmulo.>

Mas talvez a sua ausência nos ensine, mesmo que com atraso, que há urgência em ser para o outro enquanto o outro ainda está.>

Que os abraços precisam acontecer em vida.>

Que o cuidado não pode ser adiado.>

Que o amor não se escreve – se vive.>

Eu espero, sinceramente, que onde quer que você esteja agora, haja leveza. Que não haja cobrança. Que não haja a frieza das instituições, a exigência de performance, o abandono travestido de reverência.>


Descanso verdadeiro. Descanso para o ser humano que você foi, antes de qualquer papel social.>

E se há algo a se aprender com a sua partida, é que a presença necessita ser mais do que uma assinatura em lista. Precisa ser escolha. Um gesto deliberado de afeto.>

Viver, como minha psicanalista costuma dizer, é ‘atravessar a vida tentando não desabar’.>

Mas a verdade é que, às vezes, desabar é inevitável. E quando isso acontece, tudo o que desejamos é que alguém nos enxergue a tempo.>

Você merecia ter sido visto. E o que mais me machuca é saber que não foi.>


Com o eco do que não fizemos. Com o atraso do que poderíamos ter dito. Com a dor da palavra que agora chega sozinha.>

Mas, sobretudo, com a tarefa de não repetir essa ausência.>

Que a sua partida nos destrua a ponto de nos refazer.>

Porque ninguém deveria ser amado apenas quando vai embora.>

E nenhum ser humano deveria ser esquecido por detrás de seus títulos.>

Com pesar que não passa, Com esperança de que a sua dor tenha cessado,>


São Félix/BA, 13 de junho de 2025″>

Fonte: www.correio24horas.com.br

Publicado em: 2023-04-11 15:09:00 | Autor: Monique Lobo |

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